quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

Breve descrição do racionalismo formal

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Último tratamento: 27/02/2024.
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Características
 
O termo racionalismo formal designa uma tradição filosófica bem heterogênea e que é parte do processo de decadência ideológica burguesa. Em sentido estrito, o racionalismo formal se caracteriza por ser um racionalismo agnóstico, isto é, uma abordagem gnosiológica parcial (rejeitando a ontologia da natureza) ou total (rejeitando a ontologia da natureza e da sociedade). Tal corrente tem o seu prelúdio no empirismo extremo de Berkeley e Hume no século 18, mas a sua afirmação enquanto abordagem consolidada ocorre na primeira metade do século 19 com o positivismo e o neokantismo. Esse intelectualismo reduz o conceito de razão (Vernunft) ao entendimento (Verstand), porém, na verdade, o entendimento é somente a primeira etapa do processo dialético da razão. Desse modo, há um conceito empobrecido de racionalidade.

Em sentido amplo, essa racionalidade formal também está presente de forma residual em uma abordagem ontológica integral do período contemporâneo: o materialismo metafísico, no sentido de uma ontologia da natureza. Como a burguesia se torna contrarrevolucionária no plano histórico-universal no ano de 1848 (Primavera dos Povos), consequentemente o seu padrão filosófico-científico se mostra empobrecido e insuficiente para captar a totalidade; época em que a razão dialética, enquanto método autoconsciente, revela a limitação dessa visão de mundo. A miséria da razão ignora ou simplesmente não aceita o padrão ontológico-dialético, que tem a sua antessala com Hegel e a sua consolidação com Marx. É, portanto, uma razão metafísica (antidialética) refém, em algum nível, da rigidez binária que o entendimento opera num primeiro nível da racionalidade.

As bandeiras da visão politicista do ser humano e da fetichização da democracia formal (liberal), por exemplo, também se revelam expressões do racionalismo formal no momento em que essa racionalidade defasada precisa justificar a irracionalidade metabólica do sociedade capitalista consolidada e/ou a conciliação de classes. Dessa forma, os racionalistas formais, insistindo nesse terceiro padrão ontológico da história ocidental, o moderno-liberal — os outros dois padrões teórico-metafísicos são o antigo e o medieval —, fazem uso de lentes racionalistas ultrapassadas, cuja a validade para a ampliação da massa crítica vence no início do século 19. O racionalismo formal é, em suma, tanto a redução agnóstica da filosofia burguesa clássica como, também, a sobrevida materialista dessa mesma filosofia, agora vista em suas insuficiências lógico-formais, científicas e humanistas.
 
Entre as características marcantes que floresceram nessa tradição, se encontram:
 
* cruzada antidialética: falar na realidade como essencialmente contraditória é uma blasfêmia para a maioria dos racionalistas, pois eles enxergam o mundo tendo aquelas regrinhas aristotélicas da lógica formal como norte petrificado. Ou seja, as ontologias antidialéticas refletem o mundo descartando o tertium datur (terceiro incluído). O hegelianismo, como se sabe, é uma exceção incompleta, pois todo o idealismo é, em suas bases, antidialético.

* agnosticismo: é a abordagem gnosiológica (abordagem antiontológica) de positivistas e neokantianos, recusando o discurso diretamente ontológico, pois consideram que toda ontologia é metafísica. A grande ironia é que, como a ontologia significa o conhecimento mais básico de todos, mesmo na postura metodológica de “abstenção ontológica”, toda teoria apresenta pressupostos ontológicos, ainda que de maneira implícita. A posição agnóstica é, em suma, uma ontologia metafísica camuflada.

* objetivismo: herança do empirismo e significa uma pseudo-objetividade decorrente do fetiche da empiria, da supervalorização do experimento científico ou, ainda, de um declarado anti-humanismo metodológico.

* fetiche da analítica: herança do racionalismo clássico e tende a gerar a matematização ou a logicização da realidade objetiva, isto é, o matematismo e o logicismo.
 
* cientificismo: o fetiche da ciência é a fé numa suposta “neutralidade científica”, que seria independente das classes sociais, ideologias e indivíduos. É a principal bandeira de uma parte dos racionalistas formais.
 
* fetiche da técnica: a ideologia que coloca a técnica num pedestal neutro, como se ela, por si mesma, estivesse nos conduzindo ao melhor dos mundos e, assim, a tecnologia/coisa/trabalho morto, seria o motor do desenvolvimento histórico e não a atividade fundante e as relações sociais. 

* politicismo: o fetiche da política institucional (republicanismo e democratismo) — ascendente no período de Maquiavel a Hegel — torna-se o “coração de um mundo sem coração” para os democratas decadentes. Uma disciplina acadêmica própria para tratar a política, a politologia, surge como necessidade para o status quo afirmar (semi)cientificamente a abordagem liberal, que é essencialmente politicista. O principal credo dessa fé é a “neutralidade do estado” e a democracia liberal é tratada apenas como “a” democracia. 

* humanismo abstrato: o humanismo liberal — fundamentado na concepção teórico-metodológica do individualismo —, tão vigoroso na fase ascendente da burguesia, mostra-se parcial após a emancipação política e o esgotamento do caráter revolucionário da ideologia dessa classe; resta a fé no auto-aperfeiçoamento da democracia burguesa para gerar a expansão dos direitos civis e humanos. Esse humanismo político-jurídico e, portanto, formal, é o fetiche da cidadania.
 
* naturalismo: o humanismo abstrato dos liberais tem como base um naturalismo fraco. No entanto, na fase de decadência ideológica, há uma tendência de maior visibilidade do naturalismo forte. Esse naturalismo metodológico significa olhar o ser social com as lentes da física (fisicismo) ou da biologia (biologicismo).

* neoiluminismo: o fetiche da educação/ilustração é o slogan unilateral de que “a educação muda o mundo e a saída é investirmos bastante no sistema de educação”. É como se os aspectos desumanizantes do mundo moderno fossem causados por entulhos arcaicos e obscurantistas e, com efeito, pudessem ser resolvidos via esclarecimento. Isso é parte da ode à “inclusão social” que, aliás, esconde o caráter burguês da cidadania moderna.

* apologia direta do capital: no mais das vezes, os racionalistas formais são os técnicos e defensores diretos do mundo capitalista, da lógica do mercado, da democracia liberal e/ou da conciliação de classes. Mundo que, geralmente, eles enxergam apenas como “moderno-científico-empreendedor-democrático-pluralista-laico-de-direitos”.

Correntes e teóricos

No âmbito ontológico-gnosiológico, as vertentes dessa tradição teórica são:
  • Empirismo extremo
  • Positivismo sociológico
  • Neokantismo
  • Empiriocriticismo
  • Pragmatismo
  • Fenomenologia transcendental
  • Empirismo lógico
  • Behaviorismo
  • Estruturalismo
  • Filosofia analítica
  • Sociobiologia
De maneira residual, a miséria da razão se manifesta em uma ontologia da natureza no período contemporâneo:
  • Materialismo metafísico
No âmbito moral:
  • Utilitarismo
  • Deontologia moderna
No âmbito estético:
  • Naturalismo (artístico)
No âmbito econômico:
  • Liberalismo econômico
  • Keynesianismo
No âmbito político:
  • Liberalismo social (é o liberalismo progressista e reformista que surge no século 19, incluindo o feminismo liberal e similares. Na sua versão clássica se inclina ao intervencionismo econômico; numa versão mais recente se apresentou como “neoliberalismo progressista”.)
  • Social-democracia (em seu sentido bernsteniano, essa corrente politicista também é chamada de socialismo democrático, pois fetichiza a democracia liberal como via gradual para uma sociedade socialista.)
Uma grande tarefa da filosofia emancipatória (materialismo dialético) é combater essa miséria da razão e peneirar a obra de grandes pensadores ligados a este campo, para ver se há algum “trigo” a acrescentar à teoria social, livre do “joio” do racionalismo decadente.

Alguns dos herdeiros ilegítimos do Iluminismo:

Comte, B. Bauer, L. Büchner, L. A. Lange, Malinowski, Durkheim, Spencer, Dühring, Jevons, Walras, T. H. Green, Mach, Avenarius, Kelsen, Bogdanov, Bernstein, Frege, W. James, Peirce, Husserl, Radcliffe-Brown, Skinner, Russell, Saussure, Keynes, Hayek, Mises, Abbagnano, Wittgenstein, Althusser, Bobbio, Piaget, N. Hartmann, Carnap, Parsons, Quine, Lévi-Strauss, Wertheimer, Cassirer, G. A. Cohen, Bertalanffy, Merquior, Habermas, M. Bunge, Kripke et alii.

Além de conteúdos, essa tradição fundamenta novas formas de expressão da produção acadêmica. A especialização é um processo inevitável na produção de conhecimento, mas o que caracteriza o fatiamento positivista da ciência social é a fragmentação que não apreende a articulação coerente com a totalidade do ser social (e deste com o ser natural). A decadência na divisão do trabalho intelectual gera um conjunto de semiciências:

* economia vulgar (economics), sociologia, politologia, antropologia, historiografia, ciência jurídica (direito moderno) e psicologia unilateral.

No âmbito estético, a forma contemporânea de produção e distribuição da arte gera uma padronização e massificação que tende a rebaixar os conteúdos e mercantilizar intensamente as expressões dessa esfera. É a chamada indústria cultural.
 
Relações com outras ideologias

1ª observação: o herdeiro legítimo do Iluminismo é o materialismo dialético. É justamente esse novo padrão filosófico-científico que supera (aufheben) o padrão moderno-burguês (que, de maneira ascendente, vai de Maquiavel até Hegel, com o epílogo em Feuerbach).
 
2ª observação: No final do século 18, o liberalismo clássico (revolucionário) começa a se desdobrar como liberalismo conservador. No século seguinte,  desenvolve-se uma tendência política distinta, de caráter democrata e reformista: o social-liberalismo. Paralelo à tradição liberal, o socialismo moderno, na sua vertente científica, sindicalista, parlamentarista e sem inclinação romântica, também se revela um descendente direto do Iluminismo. Porém, o padrão político superior pode retroceder, em algum nível, ao padrão racionalista ultrapassado da ideologia liberal: no período da Segunda Internacional (1889-1916), a social-democracia, depois de espremer e expelir a ala revolucionária (comunista) de suas fileiras, torna-se sinônimo de reformismo politicista no movimento socialista.
 
No âmbito filosófico (e metodológico), a tendência à formatação da ciência social em semiciências (sociologia, antropologia, politologia, historiografia, economics etc.) e a compreensão inadequada da dialética materialista contribuíram para que a tradição marxista desenvolvesse uma coloração neoiluminista.  Surge o protomarxismo filosófico; no caso racionalista, um marxismo formal. Por outro lado, um social-democrata pode ser, filosoficamente, um marxista heterodoxo (o protomarxista E. Bernstein) ou um marxista ortodoxo (C. N. Coutinho tardio), pois o revisionismo oportunista só é uma condição necessária no pensamento político desses socialistas que fetichizam a democracia liberal. Da mesma forma, pode haver um protomarxista racionalista que é, politicamente, um leninista (L. Althusser é um exemplo nesse sentido). Quanto à questão do uso das semiciências pelo pesquisador marxista, também é preciso ver como estão sendo usadas em cada caso. Se há consciência dessa fragmentação e, com isso, o objeto de estudo está fundamentado na categoria da totalidade (dialético-materialista), pode conseguir resultados para além da miopia que o academicismo coloca para a sua disciplina.

3ª observação: a decadência ideológica burguesa não implica somente no racionalismo formal: há, junto a ele, outra tradição filosófica decadente. O irracionalismo moderno significa a destruição da razão (como bem diz o título de um livro de G. Lukács) e filia pensadores como Burke, Nietzsche, Heidegger e Deleuze. No âmbito político e econômico, é possível ver uma combinação que gera um romantismo liberal com as variantes de conservadorismo liberalfascismo liberal e anarcocapitalismo.
 
Não há nenhuma ideologia “inocente”, como disse Lukács. Nesse sentido, temos que analisar a arte e a teoria (filosofia e ciências), principalmente, a teoria social (ciências humanas), em si, em sua coerência e função histórica, independente das (boas) intenções de seus porta-vozes.

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2 comentários:

  1. O que vc quer dizer com ontologia metafísica? Achei que fossem sinônimos. Não tenho muito conhecimento de filosofia.

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    1. Então, muitos usam como sinônimos mesmo. Outros colocam como se a ontologia fosse uma parte da metafísica. Há também o uso do termo "metafísica" em sentido estrito de "ontologia idealista". Enfim, é possível observar variações sobre o tema. Na tradição marxista, ou pelo menos em sua parte predominante, o termo "metafísica/metafísico" é usado como antinomia de "dialética/dialético", ou seja, significa "antidialético". No entanto, há marxistas que descartam o uso do termo "ontologia" para tratar da teoria marxista do ser - provavelmente porque acham que serve como sinônimo de metafísica. O velho Lukács vai enfatizar a importância de usar o termo, observando que o materialismo dialético se trata de uma ontologia dialética, não-metafísica.

      E quanto a Hegel? Bom, na análise de Marx, Engels e demais marxistas, a sua ontologia é formada por uma incoerência interna, resultando num duplo caráter. Lukács aponta que esse duplo caráter pode ser entendido como uma ontologia metafísica e uma ontologia dialética imbricadas.

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